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KBOCO

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 QUENTCHURA
Texto: Ana Avelar
08|08
|24 - 06|09|24

“Quentchura”: remix do abstrato com o sagrado na obra de Kboco

Desde sempre, usamos a imagem para comunicarmos ideias entre nós ou com as divindades. Em outras palavras, sempre houve uma intenção de se formalizar algo que podemos apenas acessar ao imaginar.

O teórico croata da imagem, Krešimir Purgar, observa que a vontade de abstração não é uma característica da arte moderna, embora artistas de vanguarda, no início do século XX, tenham produzido arte abstrata e escrito sobre ela . No entanto, o aspecto frequentemente obscurecido do pensamento sobre abstração no contexto da arte moderna – senão obscurecido, ao menos, minimizado ou menosprezado – é a importância conferida ao espiritual como conteúdo. Para artistas como Kazimir Malevich e Wassily Kandinsky, a arte abstrata visava representar o sentimento, a emoção, o imaterial e o inefável. O termo “representação” pode parecer inadequado quando se fala em termos de arte abstrata, mas havia então um entendimento de que tais particularidades da subjetividade humana podiam ser apresentadas, porém não por meio de formas conhecidas.

É nesse sentido da materialização de algo indizível e sem correspondência no mundo dos fenômenos que a obra de Kboco se estabelece. Entre a dimensão ritualística da magia e a experiência urbana, seus tridimensionais e pinturas evocam símbolos de culturas diversas enquanto criam outros. Suas práticas espiritualistas encontram o hip hop e a cultura de rua brasileira, pois é essa grande compostagem cultural que serve de linguagem e assunto para o artista.

Um observador dos códigos de comunicação – do graffitti e do pixo, das simbologias místicas, da música eletrônica contemporânea –, Kboco elabora suas formas a partir daquelas que seu entorno lhe fornece. Um entorno que já se apresenta misto e misturado, sem limites discerníveis entre onde acaba uma cultura e começa outra ou de seus pontos originários (se é que existiram).

Dado esse procedimento do artista, as obras que resultam são tão misteriosas quanto familiares a nossos sentidos. Lembram totens, monumentos arcaicos, objetos esotéricos. Dizem respeito, portanto, a formas que reconhecemos, mesmo que não possamos “ler” diretamente seus significados, uma vez que o léxico criado por Kboco é seu próprio. O trabalho se realiza em nossa experiência transcendental com os objetos que ele produz. Atemporais, poderiam invocar poderes não-humanos como acreditam algumas culturas; conectar-nos-iam a outras dimensões e entes mágicos.

Embora não haja figuração, a arte abstrata pode ser considerada representacional se disser respeito a conteúdos não-visuais ou materiais. Afirma o filósofo britânico Richard Wollheim acerca da diferença entre representação e figuração:

“Não devemos confundir o conteúdo representacional de uma pintura com o seu conteúdo figurativo. A ideia de conteúdo representacional é muito mais ampla do que a de conteúdo figurativo. O conteúdo representacional de uma pintura deriva daquilo que pode ser visto nela. O conteúdo figurativo deriva do que nela se vê e pode ser trazido sob conceitos não abstratos, como mesa, mapa, janela, mulher .”

Se seguirmos essa divisão conceitual, perceberemos na produção de Kboco a possibilidade de representação de imaginários esotéricos imaginários. Numa direção similar, a artista sueca Hilma af Klint entendia que suas pinturas transmitam significados de seus mestres espirituais. Pesquisadores notaram ser possível decodificar o vocabulário presente nas pinturas da artista a partir de um estudo de seu léxico formal associado à compreensão de suas crenças espiritualistas, auxiliado pelas anotações registradas em seus cadernos.

Provavelmente, o mesmo exercício seria possível no caso de Kboco. Entretanto, por que razão desvendaríamos mensagens ocultas, se o que interessa em seu trabalho é estarmos diante de algo que nos suspende do automatismo diário da vida cotidiana? Por que não apenas ficarmos diante de pinturas e esculturas que provocam nossa memória, imaginação e percepção do tempo – interno, individual, histórico, coletivo –, vivenciando essa sensação que mistura intuição, racionalidade e transe?

Kboco produz elementos geométricos que recobrem suportes em madeira, tela e parede sem realizar projetos. Segundo o artista, haveria algo em seu processo de trabalho comparável ao estado alterado de consciência de xamãs. Af Klint relatou experiência semelhante ao realizar certas pinturas. Fomos apartados dos sentidos místicos de nossa relação com a arte; desde então, não é um sentido racional que buscamos, mas a própria sensação de elevação que ancestralmente a arte nos proporcionava.

Em termos de procedimento, a mixagem de símbolos, apropriados e mesmo criados, por Kboco, se aproxima da estratégia do artista indígena denesuline-saulteaux Alex Janvier que faleceu este ano. Janvier, tendo sido raptado durante a infância pelo Estado canadense, cresceu em internatos e, ao ter reconhecida sua habilidade artística, foi enviado para estudar em escolas de belas artes. Endereçando a violência da imposição pedagógica aos povos originários, Janvier elaborou pinturas que misturam símbolos associados à sua ancestralidade a formas que remetem àquelas difundidas por artistas da vanguarda europeia abstrata, como Kandinsky e Miró.

Da mesma maneira, a arte abstrata de Kboco reúne símbolos de procedências múltiplas – hindu, budista, egípcia antiga, das culturas urbanas brasileiras contemporâneas, das ancestralidades locais e africanas – que atravessam as histórias humanas como códigos que são. Seu procedimento alinha-se ao recurso de samplear músicas – que, recortando e colando, tanto reformula aquilo que foi ouvido como, desse modo, homenageia artistas e tempos que se foram.

O título da exposição “Quentchura” segue o método da remixagem: àquilo que tem ou produz calor soma-se o “tchu” de “tchutchuca” ou “tchutchuco” – como nos referimos a alguém agradável e carinhoso (aliás, diz-se se tratar de um termo difundido pelo funk carioca, no início dos anos 2000). Neste texto, a combinação de uma diversidade de recortes de vozes procedentes de diferentes realidades evidencia a amplitude da relação entre arte abstrata, símbolos e espiritualidade. A obra em ebulição de Kboco evoca essa polifonia, apaga hierarquias entre tempos, agentes e culturas. Aponta para a essencialidade do sagrado em nossa existência.

 

Ana Avelar

 

1 PURGAR, Krešimir. “Introduction: Do Abstract Images Need New Iconology?”, em: PURGAR, Krešimir (org.). The iconology of abstraction: non-figurative images and the modern world. New York: Routledge, 2020, p.1.

2 WOLLHEIM apud MION, Regina-Nino. “Representational Abstract Pictures”. Em: PURGAR, Krešimir (org.). The iconology of abstraction: non-figurative images and the modern world. New York: Routledge, 2020, p.77.

QUENTCHURA Texto: Ana Avelar 08|08|24 - 06|09|24

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