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MARCELA GONTIJO

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ORÁCULO
Curadoria: Felipe Scovino
05|11|22 - 03|12|22

COEXISTÊNCIA PACÍFICA: ORDEM E ACASO

Aparentemente, as obras mais recentes de Marcela Gontijo, denominadas Mutações (2020-), remetem ao campo da produção abstrato-geométrica no Brasil, particularmente o seu início, no começo da década de 1950. São telas que materializam um grid, ou uma sucessão de cruzamentos de linhas verticais e horizontais, que constroem camadas sobre camadas e evocam jogos geométricos. Estão contidas nessas obras o interesse de Marcela pela Gestalt, pelo jogo óptico típico do legado que o concretismo e o neoconcretismo deixaram para a arte brasileira na passagem do moderno ao contemporâneo. Uma herança substancial, que, ainda hoje, deixa seus vestígios em produções artísticas que investigam a associação entre geometria e corpo, por exemplo. Contudo, Marcela projeta seu próprio caminho. Não abandona, evidentemente, o referente da geometria, mas constitui um método que faz toda a diferença na produção de suas obras mais recentes.

 

Marcela opta pelo I Ching, que descobriu quando morava em Hong Kong, para construir suas pinturas. Esse oráculo, também conhecido como Livro das Mutações, é o ponto de partida, a essência e o método para essa série de obras. Ao jogar as moedas, o par ou ímpar acaba por decidir a composição cromática dos hexagramas que compõem cada uma das telas. Cada jogada representa uma cor, a composição de um hexagrama. Além disso, ainda sobre as moedas, o número par decide pela linha partida e o número ímpar gera a linha inteira. A sequência cromática é decidida pelo acaso, e é ele que, paradoxalmente, constitui uma ordem ou regra para a construção das pinturas. Eu diria que não se está mais somente falando em campo da criação, mas no âmbito da invenção: o jogo — ou oráculo — consiste em manipular inventivamente as formas, produzir uma ordem maximal de informações visuais, estabelecer processos semióticos que forçam artista e espectador a romperem os esquemas convencionais de percepção e exercitarem essa nova ordem proposta. Há uma valorização dos efeitos da pesquisa e invenção de formas, há uma “fé”; porque, afinal de contas, estamos também falando em espiritualidade, na potência do acaso na criação formal. Frente ao esquema tradicional e ao passado robusto da geometria no campo das artes visuais brasileiras, Marcela rompe um esquema formal dominante e todo o sistema de significações dele, necessariamente solidário. O que se coloca como decisivo é a forma como a artista lida com o paradoxo entre seu sistema de regras muito objetivo e a casualidade do I Ching.

 

A espiritualidade e sua associação com o abstracionismo deixam Marcela mais próxima de Kandinsky do que dos neoconcretos, embora as diferenças entre ela e o artista russo sejam enormes. Não se trata de comparar as obras nem os projetos (até porque os russos se aproximaram de práticas místicas que destoam do interesse de Marcela na realização de Mutações), mas apontar aquilo que foge ao que se espera, de um desvio frente à ordem, isto é, em como as coisas do espírito atravessam uma pesquisa “cientificista”. A espiritualidade (ou transcendência) nas artes foi tratada em diversos tempos e sob muitas maneiras. Lembremos, por exemplo, dos vigorosos estudos de John Cage a respeito dos cogumelos ou de sua peça Music of Changes (1951), que fez uso do I Ching como parte do processo de composição. Há, ainda, o projeto de Matisse para a Chapelle du Rosaire de Vence, construída entre 1947 e 1951 na França. E não podemos esquecer da Igreja Nossa Senhora de Fátima, inaugurada em Brasília em 1958 e adornada com um painel de azulejos de Athos Bulcão e um afresco de Volpi. À pergunta inicial, de qual o diferencial de mais uma obra de tendência construtiva na história da arte brasileira, Marcela responde quebrando essa visualidade, de reconhecimento aparentemente fácil, introduzindo um elemento da cultura oriental ao processo de criação, e discutindo, por tabela, a forte presença da herança europeia na formação das artes visuais no Brasil.

 

A escolha de Marcela pelo I Ching desconstrói associações perenes a respeito da visualidade do grid. A ideia sobre uma imagem derivada de um trabalho racionalista, objetivista, privilegiador de procedimentos matemáticos e de uma integração positiva na sociedade é sobreposta — afirmo isto porque a artista não anula essas referências, mas o seu modo de concebê-las — por um método que valoriza a intuição e a imprevisibilidade.

 

É importante acentuar que o interesse pela geometria sempre delineou o trabalho de Marcela. Em sua última exposição individual, New Territories (2016), a artista fez uso da instalação como suporte, mas sem perder a instância mondriânica do grid. Marcela fazia referência, naquela altura, ao caos da metrópole e ao ritmo acelerado. Como escrevi naquele tempo para o folder da exposição, “a artista faz uso de recortes de jornais e revistas que, colados um ao lado do outro ou sobrepostos, e depois sendo cobertos por uma camada de tinta, revelam uma cacofonia e perturbação visual que são típicos de uma cidade em convulsão, crescendo, expandindo, ativando todos os componentes que a fazem ser uma metrópole”. Mutações é resultado dessa pesquisa que se interessa, em particular, pela cor. Nessa exposição, a cor também possui um valor autônomo, um valor em si, metafísico, relacional, e não a constituição de um campo ou área que funciona, basicamente, como elemento divisor de espaço, parte da dinâmica informacional do trabalho. A cor, decidida pela jogada das moedas, detém uma origem subjetivista que desencadeia, por sua vez, um fim, um resultado. As pinturas de Mutações são um projeto, mas é importante salientar que não podem ser vistas isoladamente como algo puramente mecânico. É a presença do imponderável, da assimilação de sutilezas inefáveis que as distinguem do reino objetivista da formalização matemática e da pura visualidade. O I Ching é o primeiro passo, é a decisão sobre o gesto, por onde ele caminha e que procria. Marcela torce, rasga e dobra um certo automatismo mecânico na feitura do grid. Mutações não é uma pintura orgânica, como se convencionou nomear parte de certo repertório contemporâneo nas artes, nem exatamente requisita o corpo.

 

Quando se toma conhecimento do procedimento em como as pinturas são feitas, o que mais intriga, ao menos para mim, é especular e imaginar o lance de dados — eis o acaso mallarmeniano — e a forma em como os hexagramas são construídos, a escolha das cores, as formas que vão pouco a pouco sendo formadas. É claro que Marcela não deixa de discutir também situações típicas da pintura, como gesto, plano, espaço, cor, escala, etc. Todos estes elementos estão concentrados no grid, uma síntese dos interesses e debates levantados pela artista ao longo de sua trajetória, seja o grid dissimulado, recortado e dobrado em instalações, seja no plano bidimensional associado a procedimentos que nos levam a pensar na sua estrutura aberta e imprevisível. Desviar a nossa atenção para o gesto dos dados, para aquilo que é pura imaginação, isto é, um processo que não pode ser previsto, é a força dessa série.

 

Felipe Scovino

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