MARCELA GONTIJO
NEW TERRITORIES
Curadoria: Felipe Scovino
novembro/2016
A obra de Marcela Gontijo não só tem a cidade como tema mas é atravessada por ela. Seu trabalho destaca e explora a velocidade, a transitoriedade e a diversidade que fazem parte de uma grande metrópole. As obras dessa exposição – nomeadas como New Territories - foram produzidas em Hong Kong, uma cidade cosmopolita e que nas décadas recentes foi tomada por arranha-céus, empresas multinacionais, grandes escritórios, modernização da sua área metropolitana e ampliação dos serviços públicos mas também por uma forte especulação imobiliária, especialmente em áreas que eram pouco habitadas e sofriam de uma carência do Estado. Enfim, uma história semelhante, guardadas as suas especificidades e características naturais, culturais e econômicas, a que o Rio de Janeiro vem passando.
Este sintoma de uma cidade em transformação, atravessada por novas configurações geográficas, oportunidades de trocas culturais, cores, formatos, enfim, um turbilhão de informações e também revezes geram os mapas ou pinturas de Gontijo. Afirmo que são pinturas pois nascem do plano e se conectam, por isso mesmo, a plantas baixas. É como se pudéssemos perceber através delas, a diagramação e escala de novos bairros, a disposição das áreas urbanas mas também uma espécie de imagem e som da cidade. A artista faz uso de recortes de jornais e revistas que colados um ao lado do outro ou sobrepostos, e depois sendo cobertos por uma camada de tinta, revelam uma cacofonia e perturbação visual que são típicos de uma cidade em convulsão, crescendo, expandindo, ativando todos os componentes que a fazem ser uma metrópole. Um aspecto novo que Gontijo traz é a aplicação da tinta: ela é aplicada sobre uma superfície de plástico, descola-se desse suporte e ganha autonomia e volume. Finalmente é colada na lona ou no compensado, que são os suportes de suas obras. Esse efeito ganha uma conjunção com todo o conjunto de sua obra, pois quando tomamos contato com ela percebemos sua característica ilusória: ela se expande pelo espaço, já que a aglomeração e sobreposição de processos utilizados pela artista faz com que as obras cresçam, estufem, ganhem volume e densidade. Elas querem ganhar o espaço assim como as metrópoles que a cada dia têm as suas fronteiras reinventadas.
Essa conjunção de formas, ruídos e diferenças da cidade ganha uma leitura ainda mais convincente da sua heterogeneidade ao interpretarmos as fitas adesivas e monocromáticas como ativadoras do espaço. Os recortes e colagens, por sua vez, me remetem aos muros das cidades, grafitados e muitas vezes preenchidos por “rasuras” e restos de cartazes ou da sobreposição e acúmulo destes no espaço urbano. Todas essas imagens que constam na obra da artista funcionam como fronteiras desse espaço veloz e multifacetado que é a cidade. Em algumas obras, os diagramas que são construídos com as fitas lembram a estrutura do mapa de um sistema de metrô, ou de ruas e avenidas sendo atravessadas ou ainda de fachadas de prédios, o que intensifica o grau de caos e o ritmo intenso da cidade.
O conjunto de colagens, recortes, fitas adesivas e tinta evidencia a complexa trama de uma cidade. Estão lá a diversidade de distúrbios, línguas, aproximações, estranhamentos, atritos, culturas, sons que geram embates e diferenças entre eles, e é exatamente por esse motivo que a cidade se torna ativa e vibrante.
Nessa série de obras, as imagens que se revelam são leituras e circunstâncias de uma velocidade frenética do tempo e da ação do homem. Diante dessas obras, conseguimos fabricar uma pausa, um intervalo, e observar e especular atentamente sobre os diversos signos que nos confrontam. Estão lá o bombardeamento constante das mídias, a compulsão, as benesses do progresso mas também o aceleramento desenfreado das cidades que pode acarretar em diferenças sociais e econômicas irreversíveis. Gosto de pensar que essas obras representam um microcosmo do nosso tempo e em particular do movimento sem controle das cidades. Esta sensação de dispersão, falta de controle em alguns momentos e alargamento das cidades se reflete na obra da artista pelo fato também do nosso olhar perder um ponto de referência. Ele é levado a vagar simultaneamente por uma multiplicidade de áreas, sem se prender a um centro.
Suas obras sofrem influência não apenas do ritmo transitório e acelerado das cidades mas também daquilo que as singulariza. Estão lá recortes de prédios e marcos da cidade, e as fitas que identificam os limites urbanos mas há uma outra camada além dessa. Sem de modo algum desqualificar a obra, pelo contrário, mas há uma visualidade de um procedimento de gambiarra que atravessa a sua produção. Podemos perceber isso em alguns dos registros fotográficos que compõem as obras pois elas evidenciam práticas que são ao mesmo tempo culturais e feitas no improviso (é o caso dos andaimes feitos com bambu e registrados pela artista). E a gambiarra também acaba fazendo parte da própria constituição da obra, pois o acúmulo, a disposição e o diálogo consistente entre os diversos materiais que a artista emprega, acabam manifestando esse dado, mais uma vez, do improviso, que penso ser o caráter de distinção e particularidade cultural que cada cidade constrói para si.
Concluo chamando a atenção para uma característica que integra ainda mais a obra de Gontijo ao comportamento da cidade: ela é instável, expansiva, nos leva a pensar a sua continuidade plástica para além dos limites da moldura, pois convoca a nossa imaginação a perceber que a obra está “se fazendo” a todo o tempo.
Felipe Scovino
curador