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XICO CHAVES + CLÁUDIA LYRIO

O MANUSCRITO -  Cláudia Lyrio (1).jpg

DESLIMITES DA ESCRITA
Texto crítico: Marisa Flórido Cesar
19|07|25 - 16|08|25

O poema foi canto antes de ter seus versos grafados na argila, na pele ou no papel.  A escrita foi leitura de sinais enviados por deuses, em constelações ou em rastros na terra, antes de ser signo desenhado sobre a superfície da pedra. A letra foi imagem, antes do alfabeto ocidental empalidecer a visualidade de sua escrita, e se tornar fonético e abstrato, veículo racional de sentidos.  

A relação entre escrita, imagem, e suporte de inscrição e sentido articula uma série de questões filosóficas, artísticas e políticas que atravessaram a tradição ocidental, da metafísica aos debates contemporâneos sobre linguagem, arte e representação.  São campos de disputa sobre o modo como mundos se inscrevem e se compreendem. 

No entanto, a escrita encontraria, nas artes e na poesia, a abertura privilegiada para desdobrar-se, complexificar a cisão entre palavra e imagem, visível e legível, nome e coisa, matéria e sentido. Como outros sistemas de escrita, a exemplo dos ideogramas orientais, imagem e texto, suporte e leitura, nas artes, se entrelaçam em colisões e reciprocidades na constituição dos sentidos.  Desatada dos limites do confinamento da página ou da linearidade discursiva, poetas e artistas transbordariam a escrita. O alfabeto não se deteria na linha abstrata, não obedeceria aos contornos – a palavra escorreria pela borda do significado e dos suportes convencionais. A escrita migraria, expandindo-se como poema-objeto, poema-processo, poema-instalação, poema-cidade, poema-paisagem. Infiltra-se no corpo, irrompe em objetos e imagens, nos muros e nos gestos, em sons, matérias e espacialidades.   

Xico Chaves e Cláudia Lyrio são artistas e escritores. Ambos entrelaçam arte e literatura:  nos deslimites da escrita, letra e imagem, palavra e objeto, nome e coisa já não se opõem, antes se tramam em uma zona de contaminação mútua, em que ver e falar, o legível e o visível, o nomeável e o informe, coexistem em tensões e indistinções. A escrita em suas obras revela-se então, não como clausura ou significação estável, mas como campo de abertura, de deslocamento e de reinvenção sensível — aquilo que insiste antes e além da estrutura linguística, como marca, diferença e inscrição na (e como) matéria do mundo.  

Xico Chaves, desde a década de 1960, transita entre diversas categorias da arte: poemas, música, pinturas, objetos, instalações, performances, intervenções, vídeos. Entre elas, um fluxo contínuo, uma transfusão sem fronteiras.  Quando a palavra irrompe em seus poemas-objetos, ela não o legenda, não o nomeia, mas o atravessa, o contamina – a um só tempo o transforma em linguagem e opacidade. O objeto, por sua vez, devolve à escrita seu peso, sua materialidade, sua dimensão concreta e sensível. Se, desde as vanguardas (sobretudo a partir do ready-made de Duchamp), o objeto na arte deixou de ser apenas suporte ou representação para tornar-se operador conceitual e poético, os nexos entre as palavras e aquilo que elas nomeiam ora se revelariam arbitrários, ora se embaraçariam de modo inextricável. 

Entre palavra e matéria, entre o signo linguístico e o mundo das coisas, nos objetos-poemas de Xico Chaves, instaura-se um intervalo de ambiguidades e permutas. Nesta escrita-objeto ou objeto-escrita, a palavra não é apenas signo transparente de sentido, mas tem a opacidade de coisa; o objeto tampouco é materialidade muda: ele fala, mas de um lugar instável de inscrição, precário e além de seus contornos – é atravessado por memórias e vozes da própria matéria que o constitui. Nos poemas-objeto “Peso pesado”, lê-se AR, CÉU, EARTH, sobre garrafas de cimento, minerais, cal e resina. À invisibilidade translúcida de (palavra) ar e céu, confronta-se a densidade dos minerais como o grafite puro, cuja materialidade traz camadas de memórias e sentidos.  “Forças ocultas”, garrafas pet (de Coca-Cola) pintadas com tinta mineral preta e preenchida com terra vermelha de Brasília, aludem a momentos obscuros de nossa República, como o suicídio de Getúlio Vargas ou a renúncia de Jânio Quadros, atualizados no círculo vicioso das instituições políticas, cativas do poder econômico. Nos “Poemas translúcidos”, inverte-se o processo: em retorcidas garrafas pets, versos impressos em letras pretas pairam como espectros sobre a superfície diáfana. 

Tal jogo de obliteração, para que a palavra se cale e a terra, a pedra, o fogo, o ar falem, radicaliza-se em outras obras. Desde os anos setenta, o artista realiza obras, entre pinturas e objetos, com minerais e pigmentos naturais recolhidos em expedições ao Quadrilátero Ferrífero em Minas Gerais e outras regiões do Brasil.  “Livro de pedra (olho mágico)” é um livro petrificado com minerais, pigmentos naturais e resina acrílica. Em outro trabalho, o poeta lê 1000 poemas inéditos pela última vez, incinerando-os em seguida, encerrando-os reluzentes em um “Cubo meteoro”. Eles seguirão invisíveis nas ondas sonoras disseminadas pela última leitura, ou na voz do fogo que os amalgamou.  

Em seus poemas-espaciais, palavras adesivadas no chão da galeria ou na escada, tramam jogos entre significado, leitura e corpo em movimento. Ler é caminhar, respirar, espiralar. No vídeo “Multiverso”, a escrita viaja pelo cosmo, busca constelações de sentidos, outras leituras. São versos de seu livro Poeta clandestino que cintilam, retornando como cifras outrora enviadas pelos céus: “Um ponto visto de longe ilumina o céu / É a palavra incandescente / Tudo reluz”. 

Cláudia Lyrio é uma escritora-artista cujas obras híbridas - pinturas, desenhos, aquarelas, colagens e livros de grandes e pequenas dimensões - estabelecem uma conversa infinita com a longa tradição do alfabeto que se rendeu à sua potência imagética: das carmina figurata aos caligramas, de Mallarmé a Picasso, de Magritte a Duchamp, da poesia visual à escrita assêmica e às linhas desenhadas nos desertos da Land Art. A escrita não é transposição da fala ou um sistema de representação cuja função seria codificar e preservar o significado por meio de signos visuais. A letra, fragmento visual e material, resiste à transparência do significado, à abstração do fonema, revela o resto que escapa: interroga sentidos ao mesmo tempo em que os abre, em rastros e derivas.  

A artista apresenta três séries, iniciadas no confinamento da pandemia: “O Manuscrito”, “Estudo para futuros possíveis” e “Labirintos meditativos”. “O Manuscrito” é um livro expandido, em que cada tela é uma página, escrita-desenhada-pintada por suas personas (a escritora, a naturalista melancólica, a arqueóloga...). Nelas, aves, árvores, terras, bichos encontram a visualidade da palavra escrita nas linhas entrelaçadas de seu vocabulário Lyrico-poético. Cada tela/página contém outras tantas páginas, excertos, colagens, anotações, titubeios. Ficções espiralares, contos que contêm contos, que saltam entre tela e outra, em anacronismos e emaranhados.  A letra se curva, se apaga em sopros e ruídos visuais, quase pura mancha; o texto se converte em fragmento, em murmúrio, em ruído, que ora borra a legibilidade, ora acende em uma frase, em um fragmento poético que refulge da tela, disseminando fugas inesperadas. Um verso extraviado ou enigmas contidos nos títulos remetem a tantos outros livros e poemas desta vasta biblioteca que habitamos. Cada tela/página é assim um portal para mundos possíveis, mas cujos relatos estão sempre interrompidos, suspensos, incompletos. Jamais linear, jamais domínio pleno do texto, a leitura é escolha e errância no mergulho de cada página-tela, ou nas interpáginas distribuídas no espaço por onde se esparge, a cada nova configuração expositiva.


Na fricção entre as marcas gráficas e as formas visuais, a escrita de Lyrio se converte em traço, vestígio, rasura. Por vezes, lança-se na aventura do labirinto e perde-se na deriva dessa escrita de caminhos, entre sendas meticulosamente projetadas.  Por outras, risca mapas para denegar território e corpos fechados, desenha margens para atravessá-las, costura excessos para encontrar silêncios. Cada trilha é também fenda, sentido e vertigem.

Escrever é, em Lyrio, uma coreografia compulsiva, traçado vivo de um corpo situado em relação com superfícies, texturas, resistências e tempos – não apenas inscrição de signos. Escrever é um ato sensível, poético e relacional em que mundos e existentes co-emergem em fluxos de palavras, imagens e afetos. O gesto de escrever torna-se então matéria que treme, gesto cosmopoético que afirma a inseparabilidade entre forma e fundo, pensamento e carne, linguagem e visualidade. 

Nos deslimites da escrita, o signo se esgarça, o nome renuncia ao nome, o alfabeto se curva à imagem, e a palavra, insurrecta, recusa-se ser refém de códigos e páginas. 

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